Jorge A.
Para quem me lê habitualmente, sabe a admiração que tenho para com os Estados Unidos da América, a esse propósito, aqui fica um texto feito especialmente para o dia de hoje (que, dada a dimensão, ameaça contrariar todos os consensos sobre o que deve ser escrever na blogosfera) - será o post único do dia presente na página principal, assim que Barack Obama for confirmado como próximo presidente dos Estados Unidos da América, este blogue regressa ao normal:
O MUNDO DE OLHOS POSTOS NUMA NAÇÃO
Para quem duvidava da influência e importância dos Estados Unidos no mundo, os últimos tempos deixaram pouca margem para tal argumentação. É ver a forma como tantos apaixonadamente falam das eleições americanas, ou como tantos ficaram na expectativa da resposta americana à crise financeira. Nos noticiários tugas as eleições americanas ocupam largo espaço e recursos financeiros, com os melhores jornalistas de cada estação a serem enviados para a nação americana acompanhar a evolução da campanha. Ao mesmo tempo, a culpa da crise financeira foi imediatamente apontada ao grande satã americano e a responsabilidade da resposta à mesma, inicialmente, foi deixada só para estes.
George W. Bush deixou meio mundo indignado com os Estados Unidos e a "estupidez" do seu povo, capaz de eleger tal "incapaz" para o cargo mais importante do mundo. O mundo indigna-se acima de tudo porque na escolha para o cargo mais importante do mundo, o resto do mundo não é tido, nem achado (os americanos tem até a mania, imagine-se, de pensarem pela sua cabeça, e por vezes na escolha contrariam a vontade do mundo). Talvez ficasse bem ao resto do mundo, especialmente aos europeus, preocuparem-se mais com a quantidade de gente capaz e inteligente que elege, do que com os incapazes do outro lado. A altivez e condescendência do povo europeu para com o americano, que tanto serve para tratar os americanos como ignorantes, como logo de seguida para dizer que estes olham para si como os maiores do mundo, deriva mais de um complexo de inferioridade do que outra coisa. Claro que existem outras causas a suportar uma visão negativa para com os Estados Unidos, a queda da União Soviética deixou muita gente irada e a aguardar impacientemente pelo ajuste de contas com o passado. Mas o que realmente importa é: o que faz dos Estados Unidos uma grande nação?
Às portas de entrada de Nova Iorque, na liberty island, estará certamente a primeira dica para a explicação. Nenhuma outra nação do mundo valorizou tanto o conceito de liberdade como a americana, não tivesse sido a formação daquele povo força da vontade de ser livre. "A Europa foi criada pela história. Os Estados Unidos pela filosofia." A frase é de Tatcher e ajuda a explicar as diferenças que marcam um povo do outro. O marco dos pais fundadores da nação americana mantém-se até aos dias de hoje, e aquele maravilhoso parágrafo da Declaração da Independência Norte-americana, onde Jefferson atribui como direitos inalienáveis do Homem a vida, liberdade e a procura da felicidade é música para os meus ouvidos. É certo que a fundação americana foi influenciada pela revolução francesa, mas a revolução francesa, que brotava como a americana de uma revolta contra a tirania, a certa altura desvaneceu no ar e outra tirania foi imposta. Os americanos, e Jefferson em particular, tiveram mais cuidado na formação da nova nação que nascia, estabelecido ficou que o poder do governo deriva do Povo e é Direito desse povo derrubar qualquer governo que recorra à tirania. Desta desconfiança dos americanos face ao governo, nasceu um sistema de checks and balances limitativo da actuação dos vários ramos do poder - só por isso Bush merecia cair, uma vez que, tendo como desculpa o 11 de Setembro, fortaleceu o poder do governo face aos governados.
Ora, de uma nação cujos principios basilares eram a vida, a liberdade e a procura da felicidade, mais tarde ou mais cedo a grandeza emergiria. E emergiu, na realidade do famigerado sonho americano. E se na liberty island temos o simbolo, na ellis island tivemos a porta de entrada de milhões de imigrantes em busca de outras condições de vida do que aquelas que tinham nos seus países de origem. E de forma poética os descendentes de muitos desses imigrantes foram os mesmos que mais tarde vieram dar a sua vida a lutar pela liberdade europeia nas costas da Normandia.
Mas a construção da nação americana não foi só constituida por facilidades. A expansão para oeste não foi feita sem sofrimento por parte do povo indio que viu as suas terras serem ocupadas pelo novo povo que chegava - contudo, as comunidades no oeste foram criadas praticamente sem ajuda de qualquer governo, às vezes tendo de suportar a lei da bala e da força, mas mais vezes com base na fé e esperança de homens comuns na simples procura de uma vida melhor para sí e para os seus - e assim uma nação ergueu-se para oeste, não venham agora esperar que boa parte dessas comunidades tenham particular fascinio, ou sintam necessidade, dos seus governantes. Boa parte daquilo que chamam a américa profunda nasceu destas comunidades, onde o progresso era feito com base no mérito e vontade de cada um, mas onde os mais fracos eram também eles poupados pelo acolhimento entre os membros da sociedade - e onde a relgião tinha relevância fundamental para ajudar a suportar as agruras do dia a dia. Querer mudar isto, como por vezes alguns progressistas americanos pretendem, é querer fazer outra revolução americana, mas desta vez uma que não brota do próprio povo a que se destina.
Mas o maior revés, algo que sempre colidiu com as palavras inscritas na declação da independência americana, terá sido a existência de escravatura. Para resolvé-la, os americanos tiveram de recorrer á lei da bala em meados do século XIX, sendo que em plena década de 60 do século XX ainda andaram entretidos com o movimentos dos direitos civis. Esse é o assunto que desde a fundação americana até aos dias de hoje nunca foi completamente resolvido. O racismo foi parte integrante da história americana e o assunto terá tido uma relevância que em mais nenhum país do mundo a teve, mas estas eleições americanas de 2008, independentemente dos resultados finais, já foram um passo gigante para a cura desse mal que alimenta o coração de alguns dos americanos.
A américa não é perfeita. Na américa existe probreza como no resto do mundo. Na américa existem corruptos como no resto do mundo. Na américa existe racismo como no resto do mundo. Na américa existe fundamentalismo como no resto do mundo. Na américa existe homofobia como no resto do mundo. Mas o que torna então a américa diferente? Em parte é exactamente a existência de tudo um pouco - e existindo de tudo um pouco, a capacidade de conciliar todas as diferentes tendência sobre um mesmo tecto. E acima de tudo, na américa a oportunidade de triunfar é mais palpável do que em qualquer outro país. O sucesso não é garantido, mas é possível. E como a politica americana bem prova, existe a garantia que por mais improvável que algumas concretizações aparentem ser, elas são bem reais e estão logo ali ao virar da esquina, basta para isso sorte e muito, mas mesmo muito, mérito. E esta valorização do mérito é inata à sociedade americana como, muito provavelmente, em mais nenhuma sociedade do mundo.
Mas vamos lá às eleições presidenciais de 2008 propriamente ditas...
JOHN MCCAIN E O FUTURO DOS REPUBLICANOS
Nestes últimos dias de campanha a minha simpatia para com John McCain veio ao de cima, confesso. Gosto de McCain, e se algumas vezes fui muito duro para com o que este disse e fez, tal deve-se única e exclusivamente à minha preferência por uma vitória democrata nestas eleições. A história de vida deste homem de 72 anos impõe respeito e admiração, a começar pelos cinco anos e meio que foi um prisioneiro de guerra no Vietname e a acabar na quantidade de vezes que contra tudo e contra todos, incluindo os do seu próprio partido, o homem manteve-se fiel às suas ideias e principios.
Nas primárias republicanas do ano 2000 foi dos primeiros candidatos a usar a internet e, por essa vida, a mobilização dos cidadãos comuns para fazer progredir uma campanha presidencial. À semelhança de Obama com Clinton em 2008, McCain na altura enfrentava a poderosa máquina do homem do partido, George Bush. A simpatia e apelo aos independentes e moderados fez McCain ameaçar a campanha de Bush, mas a simpatia por sí (e ainda bem) não ganha eleições, as mentiras no entanto (ainda mal) ganham-nas - McCain não quis recorrer à politics as usual e perdeu em 2000, não sei até que ponto isso não influenciou a sua estratégia para 2008.
Mas este ano dificilmente cairia para John McCain. O principal motivo? Fácil e resume-se a duas palavrinhas apenas: presidente Bush. De pouco serviu a McCain as provas dadas de independência face ao partido republicano, mesmo porque essas provas limitavam a sua aceitação por parte do eleitorado mais conservador do partido. E se a certa altura a sua mensagem parecia vingar, a crise financeira logo lembrou todo o mundo que McCain tinha uma visão sobre a economia semelhante a George Bush. Mas terá mesmo?
A minha opinião é que não. O próprio McCain divergiu de Bush quando este apresentou pela primeira vez o seu plano de corte de impostos. Dizia McCain na altura que de nada servia cortar impostos sem cortar primeiro na despesa, e eu não posso estar mais em acordo com o agora candidato presidencial republicano. Mais, e esta foi a desgraça de Bush, por muito que nos discursos tenha feito por defender as visões do conservadorismo económico, na prática deu muito pouco uso a elas. Antes pelo contrário, Bush expandiu os tentáculos do estado a outros sectores da sociedade americana como a saúde e a educação. Acredito sinceramente que com McCain teria sido diferente, mas este está a concorrer fora do seu tempo.
E, claro está, McCain tinha cometido o pecado capital quando esteve na linha da frente na defesa da guerra do Iraque. É certo que foi pioneiro na defesa de uma nova estratégia militar para o Iraque ainda antes daquilo começar a falhar por todos os lados, mas não é menos verdade que nunca percebeu (ou não quis dar parte fraca) que a guerra revelara-se completamente desnecessária. As suas declarações pré-guerra que a mesma ia ser quick and easy são de um erro de avaliação que só consigo compreender tendo em conta que McCain na altura estava mais virado para avaliações politicas do que racionais.
Apesar do apoio à guerra, em quase tudo o resto a escolha de McCain apresentava uma oportunidade fantástica para os republicanos porem para trás o legado de George Bush e reconstruirem o partido rumo, não necessariamente ao centro, mas à sua visão mais centrada no conservatorismo económico do que evangélico. Ronald Reagan, por exemplo, era um conservador social, mas a sua visão era inclusiva, e, para quem não se lembra, derrotou em 1980 o democrata Jimmy Carter que tinha para todos os efeitos uma visão profundamente religiosa da sociedade. O que Bush fez, em conjunto com alguns dos lideres evangélicos americanos ambiciosos por poder, foi criar a noção a este grupo que existia uma batalha pelo governo que influenciava as suas crenças e os seus valores. E desta forma um grupo que, até ali, pouca participação tinha na escolha do presidente do país, aderiu em massa na votação para um candidato. Bush deu-se bem, ganhou duas eleições, mas o país deu-se mal. McCain era mal visto entre este grupo, alguns prometiam a pés juntos não ir votar nele, e na casa destes levou uma assobiadela monumental. Isto era encarado pela equipa de McCain (dominada pelos tipos que tinham montado a campanha de 2004 para George Bush) como uma fatalidade que custaria certamente as eleições gerais.
Mas McCain tinha uma vantagem, não era fácil fazer crer aos independentes e moderados americanos que estávamos na presença de outro Bush. O ódio que alguns tinham por Bush em muito pouco se reflectia na sua visão de McCain. Na minha opinião McCain devia ter optado por, fazendo crença nesta vantagem, preparar a campanha tendo em conta isso - caminharia para uma derrota como em 2000? Quase certo, mas sairia de cabeça erguida e restabelecendo a marca republicana no sentido que era o seu antes de Bush chegar ao poder. Mas depois deu-se uma decisão que alteraria o rumo da campanha...
SARAH PALIN E A SUA BASE. O PIOR DA AMÉRICA?
McCain escolheu Sarah Palin como candidata a vice-presidente dos Estados Unidos da América. Lá se foram boa parte das vantagens que enunciei mais acima. O motivo? Bem, eu não sei se dada a rapidez e manifesta falta de ponderação sobre a escolha, os motivos foram completamente ponderados e estudados. Uma coisa é certa, do lado de McCain sabia-se que o rumo da campanha ia no sentido da derrota. Um game-changer era necessário e Palin, boa ou má escolha, permitia isso. Claro que logo no inicio tentou-se usar a candidata, mesmo que pelo simples facto de ser mulher, para cativar o eleitorado de Hillary Clinton (acho que é agora aceite que tal não resultou). Procuraram também atrair o eleitorado feminino no geral, por vezes denunciando os ataques iniciais a Palin como puro sexismo, mas também esse argumento caiu muito cedo na campanha. O que sobrou, o apelo ao eleitorado evangélico que tinha sido a base de apoio de Bush. E neste último ponto resultou em grande, mas quais os custos?
O custo foi a perda de popularidade de McCain junto dos moderados e independentes. Porque se o efeito Palin pareceu arrasador no inicio, à medida que a vida e carreira politica de Palin ia sendo escrutinada, o seu valor junto do eleitorado em geral foi caindo. Pior, as parecenças politicas entre Sarah Palin e George Bush eram inegáveis. Desde o seu percurso focado em assuntos do conservadorismo social que muito agradam à direita ultrareligiososa, como nas discrepâncias entre o que prometiam ser a sua visão económica e aquilo que era a efectivamente a história económica dos cargos públicos por onde tinham passado.
Não é contudo justo a forma como muitos trataram Palin e, mais concretamente, a sua base apoiante. Se Bush hostilizou aqueles que defendiam ideias diferentes das suas, convém não recompensar a coisa fazendo simplesmente o inverso. Aquiilo que vi e ouvi na forma como trataram a chamada américa profunda revela tanta ignorância daqueles que atacam essa américa como a que pretendem imputar ao grupo de cidadãos que dela faz parte.
E aí entra o homem que, melhor do que todos os outros, soube ler os acontecimentos que desenrolavam-se à sua volta...
EXPECTATIVAS ELEVADAS PARA OBAMA
Quando a maior parte vinha com a experiência como cartão de visita, um homem percebeu o que o povo americano desejava: mudança. E a mudança não advém só das politicas, mas, mais importante, da forma de fazer politica. Para além disso, Barack Hussein Obama só por sí representa a mudança de paradigma: um jovem, preto, desconhecido há cinco anos atrás, que viveu parte da sua vida num país muçulmano, chegar à casa branca, queira-se ou não, faça sentido ou não, deixará uma simbologia e uma marca forte na américa e no mundo.
Os discursos são redondos? Sim, certamente, mas os de McCain ou de Palin não o são menos. Tem um tique socialista? Sem dúvida, mas pior que Bush dificilmente será, e sendo-o, daqui a quatro anos é corrido da casa branca. Para além disso aparenta, e provou, uma verdadeira capacidade para escutar o outro lado e adoptar algumas das visões contrárias às suas. Se mais dúvidas existissem, a gente que tem a aconselhá-lo ou a apoiá-lo é garantia suficiente que não fará uma presidência muito diferente da de Bill Clinton. E estou disposto a argumentar de bom grado com alguém em como Clinton foi melhor que George Bush.
É também o tipo que esteve desde o primeiro dia contra a guerra do Iraque, manifestado naquele discurso onde afirmava não ser por natureza contra a guerra, mas contra "guerras estúpidas". Não tenham contudo ilusões que os Estados Unidos deixarão de intervir militarmente no mundo com uma presidência Obama, como alguns ansiosamente aguardam e outros ameaçadoramente advertem, no campo da politica externa a única coisa que verdadeiramente deverá mudar é a visão sobre o Iraque - e mesmo assim é uma mudança minima, visto que é possível afirmar que neste momento a administração Bush já adoptou a politica de Obama para a região e prepara a saida.
No campo financeiro e económico é onde Obama implica mais receios. Se, dada a sua visão sobre o comércio internacional, adoptar uma politica mais proteccionista, os Estados Unidos e o mundo bem podem preparar-se para um prolongamento das dificuldades e não o seu contrário. Há contudo razões para acreditar que uma administração Obama terá mais facilidade na adopção de um programa moderado para fazer face às dificuldades económicas do que aquele que seria permitido a McCain.
O Congresso e o Senado sairão das eleições com maioria democrata - e os poderes do presidente estão limitados por estas duas câmaras. Paradoxo ou não, será mais fácil a Obama contrariar as correntes esquerdistas destas duas câmaras e puxar de alguma forma por algumas medidas favorecidas pelos republicanos do que seria a uma administração McCain. Digo mais, estou convicto, sabendo de antemão que nos Estados Unidos o presidente eleito em primeiro mandato começa imediatamente trabalhar para ser eleito para um segundo, que Obama assim actuará, com ponderação e não hostilizando os republicanos.
As expectativas que Obama criou junto de tanta gente são contudo impossíveis de realizar. Os primeiros a perceber isso serão os que, contrariamente ao que lhes é natural, torcem fora dos Estados Unidos por este. Mas, mesmo internamente, a coligação que muito provavelmente elegerá Obama é tão instável, constituida por progressistas, conservadores moderados, libertários, que tenho dúvidas que em 2012 se repita.
Até lá, o mais importante, independente do resultado desta noite, manterá-se. Os Estados Unidos continuarão a ser uma sociedade maioritariamente de centro-direita, com o cunho forte dos pais fundadores ainda a marcar o seu presente e futuro, e com uma sociedade civil suficientemente activa para não deixar que nada nem ninguém ponha isso em causa. Venham os perigos dos excessos da direita ou dos excesso da esquerda.