O governo anterior tinha maioria absoluta na Assembleia da República, este não tem. Dado isto, o governo não pode tirar um coelho da cartola e exigir continuar a governar como se tivesse mantido a maioria absoluta. O governo pretende fingir que o resultado das últimas eleições apenas aumentou a responsabilidade da oposição, sem perceber que esse aumento da responsabilidade só existe se à oposição for dado mais poder, ou seja, se o governo abdicar de parte do poder que tinha no governo anterior. Mais poder à oposição implica que o PS não possa cumprir, obviamente, o programa com que se apresentou a eleições. Logo, o programa de governo agora apresentado é uma farsa.
Entretanto, acho também curiosa a posição de alguns socialistas sobre o programa de governo. Dizem eles que ganharam as eleições e por isso foi o seu programa que obteve o apoio maioritário dos portugueses, não fazendo sentido apresentar (e aplicar) outro programa que não o deles. Talvez seja bom explicar a alguns socialistas que numa democracia com um quadro institucional como o nosso, nem sequer é garantido que o partido vencedor tenha o direito a formar governo (veja-se, a título de exemplo, o caso israelita, cujo sistema é semelhante ao nosso: o Kadima venceu, mas está na oposição, uma vez que, por força das coligações possiveis, foi atribuido ao Likud a formação do actual governo). O PS venceu, é certo, mas sem maioria absoluta, o que permite dizer que a maioria dos portugueses preferiu outro programa que não o do PS. Logo, e como para todos os efeitos o PS aceitou a tarefa de formar governo, cabia a este partido apresentar um programa que procurasse incluir algumas propostas constantes nos programas dos restantes partidos. Não o fez.
No nosso quadro institucional, uma maioria relativa obriga a negociações. Dirão que as cedências terão de vir dos dois lados, mas aqui há um factor que explica a teimosia socialista em perceber o óbvio: as negociações obrigam a cedências, é um facto, mas o ponto de partida para as negociações não é igual (realço que é a primeira vez na nossa democracia que um partido passa de maioria absoluta para minoria relativa). O PS entra a negociar quanto poder perde, a oposição entra a negociar quanto poder ganha. Um, certamente, perde. O outro, na pior das hipótese, ganha menos do que esperava ganhar. Isto é uma espinha entalada na garganta do animal feroz. Por isso o animal feroz não se conseguirá conter e irá, nem que seja pela calada, provocar a queda do seu governo o mais cedo possível. O programa agora apresentado, de que mais tarde dirá não ter tido condições para o cumprir, como se agora que o apresenta já não o soubesse, é apenas o primeiro sinal do que ai vem.