Diz o António, em resposta ao meu post sobre a não necessidade de referendo na questão do casamento de pessoas do mesmo sexo:
mas não deixa de ser verdade que mais tarde, uma maioria diferente terá na Assembleia da República igual legitimidade para revogar o que vier a resultar do mais que provável entendimento do PS com o BE sobre esta causa fracturante e moderna, como gostam de lhe chamar
Ora, terá no casamento de pessoas do mesmo sexo, como terá em qualquer outra lei. E o eleitorado julgará tal governo por isso. Mas, que eu saiba, até hoje, não houve nenhum referendo sobre a matéria, e isso não impediu que a legislação, tal qual ela existe actualmente, tenha sido estável. O actual quadro legal - casamento só para pessoas de sexo diferente - é estável, já se a legislação permitir o casamento de pessoas do mesmo sexo, transforma-se imediatamente em legislação instável, a qualquer hora possível de alteração na Assembleia da República, e só possível de estabilizar caso seja reforçada por aprovação da maioria num referendo. Até compreendo: a estabilidade da legislação depende da vontade da maioria. E, estou absolutamente convicto, se a legislação actual é estável é porque respeita a vontade da maioria. Mas ai volto para a segunda questão que coloquei no texto anterior: esta é uma matéria passível de ser decidida por maíoria popular? E é nesta questão que a minha resposta inequívoca é não. De resto, acho que assim que aprovado o casamento de pessoas do mesmo sexo, a legislação permanecerá estável, porque será difícil à oposição defender o retrocesso da lei à sua posição anterior. Quanto muito, acredito que possa existir uma nova maioria que force um referendo sobre a matéria, mas não alterará a legislação directamente na Assembleia da República. Mas contínua o António:
para tal bastará inscrever tal proposta num daqueles programas eleitorais que praticamente ninguém lê
Percebo o ponto que se pretende marcar, mas não concordo. Praticamente ninguém terá lido o programa do PS, não dúvido. Existirá mesmo quem não tenha percebido que o PS defendia o casamento de pessoas do mesmo sexo. Mas, se não soube foi porque não se informou, porque eu ouvi Socrátes, mais do que uma vez, na televisão, a defender a questão e a tentar marcar pontos com ela. Ouvi, inclusive, quem se manifestasse contra o PS por pretender introduzir tal legislação. O facto de ninguém ler o programa, não implica que os que dão-se ao trabalho de o ler, não divulguem à maioria da população interessada os pontos mais importantes. E, se a questão é tão sensível, ao ponto de agora solicitar-se um referendo, porquê que alguém acha que a questão passou relativamente na obscuridade durante a campanha eleitoral? Ora, aqui eu vou fazer outro ponto importante na minha argumentação, que explica também porquê que a questão passou sem a atenção merecida: a culpa foi do PSD (e mesmo o CDS/PP optou por não levantar a questão). O PS nunca evitou levar a campanha para o tema em questão, foi o PSD que fugiu dele como o diabo da cruz. Ferreira Leite não se sentia confortável com o assunto e o PSD, parece-me a mim que de forma fundamentada (ler este post do Pedro Magalhães), considerou que perdia votos se aquela fosse uma questão central das eleições. Percebam que este ponto é importante para justificar que, se legislação for aprovada no sentido de permitir o casamento de pessoas do mesmo sexo, a mesma será estável.
Volto à questão da maioria, da vontade da maioria. Considero, sem muitas dúvidas, que a maioria do povo português ainda é contra o casamento de pessoas do mesmo sexo, e isso tem permitido alguma estabilidade à legislação actual, cada vez mais frágil porque a maioria também tem vindo a perder dimensão. Mas, reparem que a partir do momento em que o casamento de pessoas do mesmo sexo for permitido, mesmo uma minoria, por motivos eleitorais, pode impedir que um partido, como o PSD, atreva-se a inscrever no seu programa a oposição ao casamento de pessoas do mesmo sexo. O post do Pedro Magalhães, já linkado neste post, explica porquê. Olhar para o exemplo americano da permissão de posse de armas de fogo também: a maioria dos americanos é contra as actuais leis de posse de armas de fogo, mas a National Rifle Association e os simpatizantes da causa são mais do que suficientes para garantir que a vitória numa eleição penderá para um lado, ou para o outro. Por isso, os Democratas não se atrevem a propôr a mudança da legislação.
No entanto partilho várias das tuas preocupações, nomeadamente as questões fiscais que colocas de forma pertinente, o que me leva a propor a introdução da figura da União Civil, à semelhança do Reino Unido
Aqui, parece-me, entramos no campo do estatuto da instituição. O casamento tem um valor simbólico, é uma instituição respeitada, valor esse que não é atribuível à União Cívil. Poderá ser dito que o valor simbólico da instituição casamento não foi garantido pelo Estado, mas pela sociedade (a tal maioria que quer vedar o acesso à minoria), e que é um abuso permitir a um grupo minoritário acesso a tal valor simbólico às custas do Estado, quando este não é responsável directo pelo valor atríbuido à instituição casamento. Compreendo, mas não aceito. A partir do momento em que existe o casamento cívil nos moldes que conhecemos, este não pode ser discriminatório, nem deve respeitar as regras do casamento religioso que, convenhamos, foram fundamentais para a valorização positiva da instituição em causa. Mas, convém perceber que os homossexuais fazem parte dessa mesma sociedade, e eles próprios, ainda que minoritários, são também responsáveis pela valorização positiva atribuida ao casamento: não por acaso querem ter acesso a ele. Dirão que a partir do momento em que os homossexuais acederem ao casamento, o prestígio da instituição diminui. Bem, mas o Estado não pode preocupar-se com tal coisa: percebo que para atribuír valor a algo seja necessário restringir o seu acesso, não aceito é que tal seja praticado pelo próprio Estado. E se o valor do casamento diminuir com o acesso dos homossexuais ao mesmo, então também fica garantido que o Estado não consegue apropriar-se de uma simbologia nascida na sociedade cívil e atribuir essa mesma simbologia positiva a qualquer grupo que não tivesse anteriormente acesso a ela. O que não deve ser preocupação do Estado é o efeito das suas acções sobre a simbologia da instituição em causa. Aliás, se o Estado tem assim tanta capacidade de influenciar o valor simbólico do casamento, talvez o valor simbólico do mesmo resulte do próprio Estado e, por isso, o ponto que me levou a escrever este parágrafo não tem sentido nenhum.
Olhemos para a questão do divórcio. Uma das vertentes que atribui especial importância e um simbolismo positivo ao casamento, resulta necessariamente dessa ideia de que, quando casamos, ficamos ligados a uma pessoa para a vida. Dirão que já não é bem assim, mas naquele exacto momento em que duas pessoas se casam, mesmo sabendo de antemão que existe a figura do divórcio, é a ideia de acompanharem para o resto da sua vida a pessoa que tem à sua frente que as acompanha. Ninguém casa, acho eu, a pensar que dai a alguns anos podem ver-se livres de quem têm à sua frente e logo tratarão de arranjar nova pessoa com quem juntar os trapos. Mas o meu ponto é o seguinte: o casamento católico é efectivamente para a vida, porque perante Deus só casamos uma vez. Mas o casamento cívil nunca o poderia ser. Talvez as regras do Estado retirem simbolismo e importância à figura casamento, sendo que o casamento religioso reforça o valor do acto. Mas o Estado poderia actual de outra maneira? Poderia o Estado afirmar que a pessoa xyz já foi casada, divorciou-se, logo não mais poderá casar e para sempre ficará impedida de aceder aos benefícios que o casamento cívil garante? Poder, podia, mas não o faz. E se não impede o anteriormente casado de voltar a casar, também já é tempo de não impedir o que quer casar com alguém do mesmo sexo a fazê-lo.